Artista sérvia desembarca na Mata Sul de Pernambuco, no próximo sábado (3), para apresentar o site specific “Generator”, que faz convite às diversas conexões humanas por meio da energia dos minerais

Em um mundo marcado pelas conexões digitais, no qual tudo e todos parecem estar interligados como antenas, paradoxalmente, paira uma sensação de desconexão genuína das pessoas com elas mesmas, com seus pares e com a natureza. Ao tempo que a tecnologia é ponte para inúmeras relações, também afasta da verdadeira presença. Com a energia dissipada em tantas direções, a arte tem sido um vetor para a consciência do momento presente, nos trazendo de volta a nós mesmos. É nessa espiral que o maior nome da performance artística do mundo, a sérvia Marina Abramović, inaugura na Usina de Arte, no próximo dia 3, o site specific“Generator (Gerador)”, sua primeira obra em espaço aberto ao público no Brasil.

Instalada em uma área recém-expandida do Parque Artístico-Botânico do equipamento cultural em Água Preta, na Zona da Mata Sul de Pernambuco, “Generator” dá nova musculatura às contínuas reflexões provocadas pela artista radicada em Nova York sobre como as expressões materiais da natureza podem ser instrumentos de cura humana, em especial, a partir de suas pesquisas com pedras e cristais brasileiros, executadas desde os anos 1980. A obra, que também se embriona na experiência vivida pela artista em uma performance na Muralha da China, em 1988, traz um muro com 25 metros de comprimento, 3 de altura e 2,5m de largura, no qual estão aplicados 12 conjuntos com três almofadas de quartzo rosa (vindas de Minas Gerais), para que o público encoste a cabeça, o coração e estômago nas pedras – conhecidas por transmitirem calma e clareza.

Os 12 agrupamentos de quartzos ao longo do muro permitem que visitantes das mais variadas alturas possam interagir com a obra, explorando a forma como esses materiais se conectam com o corpo do ser e com o corpo do planeta.  Abramović propõe uma troca: “eu lhe dou o trabalho, você me dá seu tempo”, conduzindo as pessoas ao encontro da conexão profunda. “Neste momento de turbulenta história humana, vivemos uma época de guerras, violência, pobreza e aquecimento do nosso planeta. O rápido desenvolvimento técnico afastou-nos da natureza e perdemos a capacidade de usar a intuição, a telepatia e de lembrar os nossos sonhos. Perdemos nosso centro espiritual. A função do Gerador não é apenas uma escultura. Destina-se à interação pública com os cristais e a sua energia, na esperança de restaurar a nossa capacidade de nos conectarmos com a natureza através da quietude e da presença no aqui e agora”, defende a artista.

Abramović trabalha com o conceito que chama de “objetos transitórios”. Por meio deles, estimula o público a dar um passo além e se tornar parte ativa do trabalho, se transformando em “experimentador” dos objetos e criando o fazer artístico em conjunto com ela. “Todos os objetos transitórios têm uma coisa em comum: não existem por si próprios; o público deve interagir com eles. Alguns objetos existem para esvaziar o espectador, alguns para dar energia e alguns para possibilitar a partida mental”, finaliza a artista que tem estimulado essas trocas em trabalhos como “White Dragon, “Red Dragon, “Black Dragon” e “Chair for Departure with Crystal Points”.

Ainda nesse território de curas, em 2012, a artista percorreu mais de 6 mil km de solo brasileiro em busca desse entendimento. Na jornada, pesquisou espaços e pessoas místicas que representam os diversos tipos de manifestação de poder espiritual na cultura do País, cujo resultado é apresentado no documentário “Espaço Além – Marina Abramovic e o Brasil”, lançado em 2016, disponível na Amazon Prime. O filme faz um registro etnográfico enquanto observa os processos de apropriação artística e humana de Marina, enquanto ela entra em contato com os rituais do Vale do Amanhecer, o xamanismo na Chapada Diamantina, o candomblé na Bahia, as curas do médium João de Deus e os cristais de Minas Gerais.

Integração com o projeto

Para chegar ao resultado final de “Generator”, a artista tem se relacionado com a Usina de Arte há mais de um ano, em um processo de residência artística remota no equipamento cultural. “Como muitas vezes, o trabalho da Marina Abramovic foi um processo de costura com a história da Usina de Arte, da comunidade que está ao lado, e de Pernambuco. Independente de ser uma artista internacional, houve da criadora uma dedicação de tempo e energia para entender quem somos, quem é a Usina de Arte e de como contribuir com a trajetória do parque. Ela apresentou quatro projetos e, ao final, a obra em questão foi definida. Uma obra que conversa com a memória do lugar, com a história e com o Nordeste do Brasil. Esse posicionamento faz parte do nosso desejo de colecionar artes que continuem com uma narrativa que fale sobre a região da Usina e da relação do museu com a arte”, analisa o curador da Usina de Arte, Marc Pottier.

Para a presidente da Usina de Arte, a chegada de “Generator” consolida duas importantes frentes para as quais a Usina tem atuado: nas reflexões em torno do feminino e a internacionalização do seu acervo com diálogos e conexões locais. “Poder ter em nosso parque uma obra da Marina Abramović, cuja contribuição para o mundo das artes é imensurável, é evidenciar o protagonismo da mulher, seus desafios e sensibilidades para lidar com o mundo, nos aproximando de importantes debates sociais a partir dessa lente. A obra também não deixa de ser uma homenagem à história desse lugar ao longo dos anos e da energia e trocas que ele é capaz de oferecer, uma espécie de memorial para que nunca esqueçamos que transformar é possível”, explica Bruna Pessôa de Queiroz.

Antes da inauguração de “Generator” no Brasil, Marina Abramovic esteve em destaque até o começo de janeiro na Royal Academy, em Londres, com uma exposição retrospectiva que celebrou seus 50 anos de carreira, se tornando a primeira mulher em 255 anos a ocupar todas as salas do museu com uma mostra individual. Há mais de cinco décadas, a artista performática nascida em Belgrado, na antiga Iugoslávia, tem explorado a relação entre o ser humano e os elementos naturais por meio de performances que investigam os limites físicos e mentais do corpo. Abramovic também explora o campo  de interação entre artista e público, se tornando uma figura central na arte contemporânea, conhecida por suas obras provocativas, muitas vezes desafiadoras e intensamente pessoais.

 

Sobre a Usina de Arte

Instalado onde funcionou a Usina Santa Terezinha (maior produtora de álcool e açúcar do Brasil nos anos 1950), na cidade de Água Preta, Mata Sul de Pernambuco, o projeto Usina de Arte conecta arte, cultura e meio ambiente, a partir de um museu de arte contemporânea ao ar livre, dentro de um Parque Artístico Botânico. Nele, estão instaladas mais de 40 obras e instalações de nomes como Regina Silveira, Alfredo Jaar, Geórgia Kyriakakis, Saint Clair Cemin, José Spaniol, Claudia Jaguaribe, Matheus Rocha Pitta, Juliana Notari, José Rufino, Flávio Cerqueira, Bené Fonteles, Hugo França, Paulo Bruscky, Denise Milan, Marcelo Silveira, Liliane Dardot, Marcio Almeida, Frida Baranek, Artur Lescher, Carlos Vergara, Júlio Villani, Iole de Freitas e Vanderley Lopes.

Em meio a um trabalho de reflorestamento com plantas de mais de 1.000 espécies, em uma área de 40 hectares, o Parque Artístico Botânico é eixo central da iniciativa que irriga outras ações de desenvolvimento para a criação de estruturas para geração de renda e valor para a comunidade de 6 mil moradores no entorno do projeto. São exemplos o Fab Lab Mata Sul – Usina de Arte com terminais de computadores conectados à internet, impressoras em 3D e cortadora a laser para projetos da comunidade, a Escola de Música, a Biblioteca e Centro de Conhecimento público com mais de 5 mil títulos, além de parceria com as unidades escolares no apoio de novas práticas pedagógicas.

O objetivo é estimular o turismo, e a consequente atividade econômica na região da Mata Sul de Pernambuco, criando um ambiente favorável ao empreendedorismo na localidade, que viu nascer restaurantes, pousadas, pesque-e-pague, centro de artesanato, guias para passeios ecoturísticos, camping e a cultura de hospedagens domiciliares. “Essa guinada não seria possível sem o intenso envolvimento da comunidade, parte efetiva de todo o processo, e que, ao se sensibilizar com o potencial transformador da arte, tem contribuído sistematicamente com o projeto, desde a sua gestação até a atual condição de pilar de sustentação dele”, explica Bruna Pessoa de Queiroz, presidente da Associação Socioambiental e Cultural Jacuípe, que gere a Usina de Arte. O grupo reúne mais de 40 membros de segmentos plurais da comunidade da Usina Santa Terezinha, sendo viabilizado a partir do apoio de pessoas físicas e jurídicas.