Talvez fosse a terceira ou quarta vez que Manu Gavassi gravava a voz de “GRACINHA”, a faixa-título do seu novo álbum, quando caiu no choro. Lágrimas de raiva e felicidade escorriam misturadas. Ela sabia que uma parte do peso que carregou ao longo da já longa carreira artística estava saindo dos seus ombros naquele instante. Ao final daquela gravação, Manu estava mais leve como talvez jamais tenha estado.
Não é por acaso que “GRACINHA” também fora a escolhida para abrir o álbum – o primeiro de Manu desde o início deste processo de autoconhecimento, marcado pelo EP “Cute But Psycho”, lançado no final de 2018.
A mensagem da faixa, que você perceberá logo que der o play, dialoga com o que Manu vem dizendo em entrevistas desde então (inclusive para este que vos escreve, cóf-cóf-cóf, num longínquo ano de 2019), a respeito de um exemplar – e possivelmente doloroso – processo de autoanálise, reflexão e olhar no espelho para entender quem se é.
Da websérie “Garota Errada” ao EP o “Cute but (still) Psycho”, de onde veio a popular “áudio de desculpas”; da aula dada durante a megaexposição da participação no Big Brother Brasil 2020 ao hit “deve ser horrível dormir sem mim”, com participação de Gloria Groove, tudo o que aconteceu desde aquele 2018 até aqui foram pequenos e grandes passos para este momento.
Para esta canção – criada em um daqueles instantes que fazem a gente acreditar numa força maior e inexplicável – a melodia pipocou na cabeça de Manu quando entrava no banho e, uma chuveirada depois, estava completa. Era quase como que essa música precisasse “sair”. E o momento era agora.
Cada trabalho fez Manu conquistar uma independência artística que não se vê por aí. Quando o primeiro verso chega, portanto, é arrebatador: “Cansei de fazer gracinha”. É visceral, é pessoal, é autoconsciente.
Aqui, Manu volta a trabalhar com Lucas Silveira, que a produziu em “Cute but (still) Psycho” e “deve ser horrível dormir sem mim”. Há essa altura, Manu considera Lucas um “irmão mais velho”. E a parceria entre os dois chegou à intimidade familiar, mesmo. Inclusive, o álbum foi gravado em um sítio, com todos juntos, em janeiro de 2021.
Em família (seja de sangue ou aquela que a gente escolhe), afinal, temos liberdade para discordar, sumir e reaparecer tempos depois sem que isso seja um problema – o áudio do início de “sub.ver.si.va” é uma brincadeira entre eles, justamente por conta dos sumiços de Manu ao longo do processo do álbum, muito por conta da extensa carga de trabalho, desde 2020.
Todas as composições do disco, melodia e letra, são de Manu. As faixas em que Lucas surge nos créditos como compositor são aquelas em que a canção surgiu a partir de uma base enviada por ele. Mesmo que esteja muito claro da primeira à última nota, o produtor faz questão que todos entendam: “Este é um disco com a cara e a alma da Manu”.
Nas primeiras conversas entre eles, foram ditas algumas palavras-chave que dariam corda para a estética do álbum em si: “França”, “atemporal” e “chique”. Ao final destas nove músicas, é possível entender o que Manu queria com este direcionamento. Hoje, a definição da própria artista é um pouco diferente: “Vejo esse meu álbum como um grande brechó… E acho que me vejo assim também. Tenho referências de todo tipo, de Hannah Montanna a Molejo, passando por Françoise Hardy. E acho que vou continuar fugindo das categorias que tentam me colocar. Ninguém é uma coisa só. Essa é a magia” (risos).
Na época em que criava estas canções e as gravava, a artista se descobriu obcecada por pop francês. Não por acaso as bases mais pop pensadas por Lucas eram logo descartadas. Caso a mensagem não fosse tão clara, a participação de Alice et Moi e VOYOU deixou tudo mais evidente.
A opção estética do disco era por algo não cristalino nem clean demais. Todos os sons que você encontra ali são, de alguma maneira, propositalmente sujos, para criar textura e uma sensação de conforto, como se fosse algo que você sempre ouviu, mesmo sendo inédito. Não importa se é uma canção dançante, como a divertida “Tédio” ou uma balada de desamor, caso de “(não te vejo meu)”, o disco soa extremamente confortável, o que é ironicamente extremamente libertador pra Manu.
De modo geral, “GRACINHA” soa como um disco verdadeiro. Ponto. Um disco de pop contemporâneo que bebeu de diversas fontes e assim encontrou sua originalidade, que já é marca registrada de Manu. O vintage e o moderno caminham de mãos dadas aqui, fortalecendo o conceito do “álbum-brechó”. Por isso, o disco dá um nó na nossa noção de temporalidade e do que é “seguro” e esperado para uma cantora pop – e tudo bem, afinal estamos falando de arte, e ela é sempre mais revolucionária quando não busca desesperadamente por sentido. “GRACINHA” é também um dos primeiros álbuns do Brasil que conta com Storylines, uma ferramenta do Spotify que permite ao artista compartilhar imagens e textos para contar as inspirações por trás das canções.
A jornada iniciada em um clube de jazz com a faixa-título – abrilhantada, aliás, pelo dueto com Tim Bernardes, músico-fenômeno da nossa nova MPB – se desmancha lentamente com a chegada de uma base que poderia estar naquelas playlists famosas de hip-hop lo-fi de “Eu nunca fui tão sozinha”.
Manu meio canta, meio conversa com o ouvinte aqui: e nos lembra que é humana. Ela, afinal, saiu do BBB 20 sem saber que era um fenômeno de popularidade e foi jogada em um novo confinamento, aquele criado pelas medidas de controle da pandemia de Covid-19. Deu de cara com um mundo de máscaras, de tristeza e solidões. “Pessoas de máscaras sorriem para mim”, diz o verso que tem tantos significados que minha expressão ao ouvi-lo pela primeira vez foi igual ao meme de “mind blowing”.
“sub.ver.si.va”, explica Manu, nasceu de uma brincadeira. De tão contagiante, virou single: “Nessa noite eu te dou o meu coração e a gente esquece a toxicidade da nossa relação”, canta Manu. Com uma narrativa sobre um relacionamento complexo, ela criou uma música pop direta e desenrolada.
Durante uma de suas “fases musicais” Manu pediu a Lucas um reggaeton-triste. E assim nasceu esta música (que tem a participação de Vic Mirallas). Manu e Lucas levaram a batida do ritmo caribenho para este universo estético do álbum. E não é que surpreendentemente colou?! “O nome da música era provisório e não tem sentido nenhum com a letra, mas achei legal e ficou. Lucas é nosso emo favorito e… bom, eu também não fico muito atrás, então por que não?” se diverte Manu.
“Tédio” é minha aposta pessoal para hit. Depois de um reggaeton triste, estamos diante de um pagode-dance-lo-fi. “Achei que era amor, mas era tédio. De novo”, canta debochadamente Manu, em uma homenagem ao clássico “Cilada”, do grupo Molejo. Os beats dançantes a acompanham “cantando coisas em francês sentido”, como o sussurrar de “omelette du fromage”, que fará os fãs da animação “O Laboratório de Dexter” sofrerem uma síncope. A participação de Alice et Moi comprova a conexão Brasil-França da faixa e do disco.
Manu se diz “fã de álbuns”. E nos entrega uma narrativa polpuda neste disco, cheia de nuances, onde cada canção se conecta com a outra, contando uma grande história. “(não te vejo meu)” é o que podemos chamar de início do lado B do álbum.
Intimista, a canção traz uma história de amor (?). Descobrindo a gênia Clarisse Lispector, Manu imaginava essas possíveis histórias de amor quando a escreveu. O momento era tanto de olhar para dentro que a balada romântica do disco tem uma declaração como essa: “Não te vejo meu, mas te sinto menos seu” e “Longe de mim nos romantizar”. Um easter egg da faixa: o barulho de água no final é real, já que Manu gravou a voz no banheiro, pelo eco, e o som do chuveiro vazou. Ficou tão sincero que decidiram deixá-lo lá.
Acho que você já percebeu o caminho de Manu ao longo deste álbum, não é? Neste processo, que tem autoconhecimento e autocuidado, ela também percebe como foi diminuída pelo mercado ao longo da vida. Com o flow delicioso de “Bossa-Nossa”, ela aconselha duas doses de cachaça para quem se leva a sério demais com um pseudo-intelectualismo musical. Ela é sagaz, mas gentil.
“Catarina” foi criada como um presente para a irmã mais nova e talvez seja uma das composições mais amorosas e doces já escritas por Manu. “Meu primeiro amor é a minha irmã”, ela me diz quando conversamos sobre o álbum. Ao mostrar para Lucas, ela ouviu o que também sabia, contudo: não era uma música para “GRACINHA”, esteticamente falando. Só que se “GRACINHA” é a jornada de Manu até aqui, de construção e também de desconstrução. A composição tinha espaço, sim. E assim ela se encaixou.
Não é por acaso que o álbum chegue ao fim com “Cansei”. Neste disco 360º, a última música se conecta com a primeira de modo que ouvi-lo em looping é irresistível. O ouvinte atento perceberá como a primeira música do disco já dizia “Cansei de fazer gracinha”.
“Cansei” é a declaração final de Manu neste álbum, no qual cada pedacinho do disco construiu o caminho para o que ouviremos ali. Mas mais do que um encerramento, é também o início da nova vida de Manu Gavassi. “Cansei”, que fecha o disco, é um grito de libertação.
Foi isso que motivou o choro incontrolável de Manu ao cantar “GRACINHA”. Naquele momento, Lucas pedia para Manu gravar mais uma vez o vocal. “Eu quero que você perca o controle”, ele pediu. “Lucas, eu nunca perco o controle”, ela respondeu. Mas Manu foi lá e perdeu. Trancou o lado racional um pouquinho e cantou com o coração.
É por isso que você ouve uma rouquidão que resvala numa notinha aguda improvável em “GRACINHA” – é imensamente humano este registro, tão humano que queria ouvi-lo sem qualquer instrumentação, só a voz ali. Enquanto chorava, Manu entendia o tanto que as críticas recebidas ao longo dos anos (“voz aguda demais”, “voz de princesa”, entre outras coisas) ainda eram carregados por ela. Ela nunca foi imune às críticas – quem é, realmente? –, embora quisesse. E percebeu aquele peso todo ali.
Para Manu, “GRACINHA” é o fim de um capítulo iniciado lá em 2019, quando começou essa jornada e decidiu entender quem ela era. E, principalmente, como ela poderia ser feliz e plena com as próprias inseguranças, medos e imperfeições.
Do receio de errar, de vacilar, de falhar em um single, em um movimento de carreira, Manu Gavassi economizou por tempo demais, como podemos perceber aqui. “GRACINHA”, o álbum, é o registro de mergulho sem que ela saiba exatamente onde ela vai chegar. ‘Eu nunca perco o controle’”, ela disse. Aqui ela se deixou levar. Saltou e foi. E o resultado é libertador. Agora só nos resta aguardar ansiosamente o álbum visual, que contou com a produção da F/SIMAS, escritório que gerencia a carreira da artista e que também atua como produtora de conteúdo no mercado audiovisual. O lançamento será na plataforma de streaming Disney+.
Pedro Antunes é jornalista, crítico de música, colunista, TikToker e entrevistou Manu Gavassi pela primeira vez, tardiamente, em 2019. Mas, desde então, não perde uma chance de fazê-lo de novo.