Leitora primorosa das letras brasileiras e crítica literária de trajetória notável, Eliane Robert Moraes lançou em outubro pela Tinta-da-China Brasil o livro que atesta sua contribuição definitiva para o reconhecimento do lugar do erotismo no cânone literário brasileiro. A parte maldita brasileira: Literatura, excesso, erotismo traz 16 ensaios da autora sobre o erotismo na literatura nacional, produzidos nos últimos 25 anos de sua pesquisa.

Inspirada nos conceitos de Georges Bataille de falta e excesso nas paixões humanas, ela estuda neste volume a obra de escritores tão variados quanto Machado de Assis, Nelson Rodrigues, Roberto Piva, Reinaldo Moraes e Hilda Hilst. Ela explica que, para Bataille, poesia é sinônimo de dispêndio. Festas, guerras, ritos sacrificiais e espetáculos são exemplos da necessidade de dilapidação que existe em todas as sociedades, segundo o filósofo francês. A literatura é mais um desses casos: ela é, por definição, o celeiro do excedente. “À literatura destina-se, portanto, a tarefa de guardar os restos, as sobras, os estilhaços, os entulhos”, escreve Eliane Robert Moraes.

A parte maldita brasileira abre com uma viagem pela origem da palavra “puta”, recuperando a etimologia da palavra no século XII francês e as variações nas línguas latinas. A prostituta é recorrente nas reflexões de Bataille, vale observar, e protagonista de diferentes ensaios de Robert Moraes. A crítica dedica estudos aprofundados sobre sua representação e presença na literatura, no imaginário e nos dicionários. Depois de caminhar por diferentes séculos e gêneros, o leitor se depara no ensaio final com uma topografia da produção literária erótica no limiar dos anos 2000.

“Em franca oposição a uma tendência realista e naturalista que vai predominar na literatura brasileira no final do século XX, a produção obscena de sua última década faz uma aposta radical na fantasia, seja ela fescenina, alucinatória, mística ou grotesca. Uma vez desfeito o pacto com a morte, a ênfase trágica cede lugar a uma pluralidade de vozes que descobrem outras vias de dizer o sexo”, escreve a autora.

O livro é guiado por seções que tematizam a perversão (Machado de Assis, Reinaldo Moraes e Nelson Rodrigues), as putas (Machado de Assis aparece novamente, Manuel Bandeira, Valêncio Xavier), a metafísica e a putaria (Hilda Hilst e Dalton Trevisan) e maneiras de escrever sobre sexo, num diálogo entre autores (Mário de Andrade e Roberto Piva). Além de trabalhar a partir de contos, romances e peças teatrais, a autora também propõe um “intervalo visual” em que reflete sobre a Série Trágica que Flávio de Carvalho realizou desenhando a morte de sua mãe.

Convidada para escrever o texto de orelha da edição de A parte maldita brasileira, a escritora, ativista e professora Amara Moira celebra a publicação do livro. “Este é o tipo de obra de que necessitamos, mais do que nunca — aquele que nos convida a lidar com o caráter imaginativo da literatura em seus extremos mais gozosos e horripilantes”.

O erotismo no cânone literário brasileiro

A parte maldita brasileira: Literatura, excesso, erotismo abrange a produção própria de Eliane Robert Moraes que há 25 anos investiga o tema na literatura brasileira do fim do século XIX até os dias atuais. O nome de Machado de Assis certamente se destaca numa publicação inspirada pelos excessos; são dois os capítulos dedicados ao autor.  Em “Entre perversos”, primeira seção do livro, está em foco “A causa secreta”, conto de 1885 em que desde o início os personagens são dados como mortos e enterrados pelo narrador — única condição possível para que o segredo em torno deles possa ser comentado. Trata-se do caráter sádico de tais personagens, tão precisos em suas torturas quanto o narrador ao descrever as cenas em questão.

A teatralidade, que aparece aqui como uma possível exigência da crueldade, revela-se incontornável, posteriormente, na leitura do conto “Singular ocorrência”. Robert Moraes explicita a intertextualidade desse outro texto de Machado com o teatro e avança em sua análise ao observar que tanto a trama quanto a protagonista são compostas segundo a lógica teatral, isto é, organizando uma rigorosa dinâmica do olhar entre aqueles que olham e aquela que é olhada.

Contracapa de “A parte maldita brasileira”. Divulgação

Entre perversos

O grupo dos perversos, onde estão os personagens de “A causa secreta”, completa-se com as criações de Nelson Rodrigues e Reinaldo Moraes — autores distantes por completo no tempo, no espaço e na fatura literária, explica a autora, mas cujos “personagens perversos se esbarram inesperadamente na prática do mal, chegando inclusive a ostentar traços que evocam os protagonistas do Marquês de Sade”.

Em “Passagens para o negativo”, Robert Moraes propõe que um dos fundamentos da obra de Rodrigues é inverter o sentido cômico de um vaudeville para aproximá-lo do ritual da missa cristã, isto é, fazer uma passagem definitiva para a gravidade, mostrando para isso uma conversão nos personagens. Obras como O beijo no asfalto, A falecida e os contos de A vida como ela é…, com destaque para “A dama do lotação”, sustentam a leitura crítica.

Quando trata de Reinaldo Moraes, a autora já abre o ensaio falando de Marquês de Sade; mais especificamente, de “uma das mais finas e elaboradas formas de libertinagem concebidas pelo sistema sadiano”: o desabamento. As cenas de Sade são comparadas a uma outra, presente em um conto de Reinaldo Moraes. “Em ambos, as fantasias de desmoronamento sempre valorizam o choque, o assombro e a instantaneidade do evento. Nunca é demais lembrar que o reiterado empenho dos personagens em controlar todas as variantes da catástrofe representa, antes de tudo, a garantia de que tal meta será atingida.”

O paralelo entre os dois autores continua num comentário sobre a extensão de suas obras, nas quais os personagens se abandonam a numerosas aventuras que se prolongam por muitas páginas. Tanto nas aventuras das irmãs sadianas Justine e Juliette, que somam mais de 2 mil páginas, quanto em Pornopopeia, do autor brasileiro, as histórias lúbricas dos protagonistas se sucedem num crescendo com uma suposta inspiração épica, diz a autora.

Amor venal

“Singular ocorrência”, o segundo conto de Machado analisado, abre a seção das prostitutas, onde Manuel Bandeira lhe faz companhia. “Vulgívaga” é a palavra que orienta o ensaio onde a obra do poeta é lida à luz da presença do amor venal. A palavra dá título a um poema de Bandeira e está presente em um outro, “A dama branca”; ambos de Carnaval, publicado em 1919. Nesse caso, o emprego de palavra tão pouco usual em sua poesia se deve, antes de tudo, ao fato de que a dimensão sexual ali referida se recobre de grande e grave opacidade”, escreve a crítica.

Já na análise de dois contos de Valêncio Xavier, a autora se demora pensando no espaço onde se passam cenas lúbricas — no caso de Xavier, cubículos claustrofóbicos, corredores escuros. “É sempre o tempo que parece parar e se imobilizar, deixando de transcorrer para que os espaços vivam sua vida autônoma. Tal é o traço mais marcante desses hoteizinhos na versão de Xavier, razão pela qual eles merecem ser explorados mais de perto.”

Transformada “num mistério de toda compreensão, só comparável aos grandes enigmas humanos”, a prostituta é protagonista de “Francesas nos trópicos”, por fim; nesse último texto da seção, o leitor passeia pelas várias figuras e fantasias que a meretriz já encarnou ao longo dos séculos e para diferentes autores, na França e no Brasil.

“Obra malsã”

Única mulher do conjunto e autora das ficções mais obscenas do país, Hilda Hilst é objeto de três ensaios que examinam as relações entre a metafísica e a “putaria das grossas”. A seção da metafísica se reforça com o artigo sobre Dalton Trevisan e sua recriação poética do Cântico dos cânticos. “Ele confere voz a uma lasciva Sulamita, cujo desejo sem freios nem limites é declarado a um amante condenado a permanecer no mais absoluto silêncio”.

A seção final de A parte maldita brasileira passeia pela obra de Mário de Andrade e a profunda inquietação em torno do sexo presente nela, muitas vezes de forma enigmática. Robert Moraes se detém em momentos variados da produção mário-andradina, como um primeiro poema e outro da maturidade, o romance Macunaíma, o conto “Frederico Paciência” e o diário de viagem O turista aprendiz.

Roberto Piva convoca a figura de Mário de Andrade em um de seus poemas, em tom de partilha e cumplicidade. É o que conta “A cintilação da noite”, penúltimo ensaio de A parte maldita brasileira, que passa por diversos livros publicados nos anos 1960 e 1970, mostrando a ênfase do poeta nos cenários noturnos — menos para pensar a noite como faziam os Românticos, e mais para enxergá-la como “uma forte recusa do mundo emblemático do dia, marcado pela racionalidade do capital e pela rotina do trabalho, em função de um mergulho vertiginoso em domínios mais sombrios, em que predomina o caos”.

Coleção Ensaio Aberto

“A parte maldita seriam as sobras — aquilo que fica de fora, ou mesmo fora: da convenção, das normas, do cânone, da chamada alta linguagem”, escrevem Pedro Duarte e Tatiana Salem Levy no prefácio ao livro. Professores da PUC-Rio e da Universidade NOVA de Lisboa, Duarte e Salem Levy coordenam a Coleção Ensaio Aberto, que surgiu de uma parceria entre as duas instituições e tem início com duas publicações: A parte maldita brasileira e Não escrever [com Roland Barthes], de Paloma Vidal.

Ambos os manuscritos foram selecionados por meio de revisão por pares em sistema duplo-cego. A coleção recebe financiamento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), de Portugal, e é publicada simultaneamente no Brasil e em Portugal: pela Tinta-da-china, em Lisboa, e pela Tinta-da-China Brasil, em São Paulo.

“Os Ensaios Abertos da coleção surgiram da vontade de explorar como, apesar da conhecida crítica metafísica que a Filosofia dirigiu à Literatura, elas não cessaram de se aproximar, em especial desde a Modernidade. Nessa exploração, a forma do ensaio desponta por sua capacidade de atrelar diferentes áreas, como a política e a ética, em um exercício de escrita que faz a filosofia e a literatura encontrarem-se”, explicam os coordenadores.

Sobre a autora

Eliane Robert Moraes é professora de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo e pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Assina diversos ensaios sobre o imaginário erótico nas artes e na literatura e a tradução da História do olho, de Georges Bataille. Publicou pela editora Iluminuras os títulos Sade — A felicidade libertina(2015), O corpo impossível (2016), Lições de Sade (2011) e Perversos, amantes e outros trágicos (2013). Organizou a Antologia da poesia erótica brasileira (Ateliê, 2015), editada em Portugal (Tinta-da-china, 2017), a Seleta erótica de Mário de Andrade (Ubu, 2022) e, pela Cepe, duas coletâneas de contos eróticos brasileiros: O corpo descoberto (2018) e O corpo desvelado (2022).

Serviço

A parte maldita brasileira: Literatura, excesso, erotismo

Eliane Robert Moraes
Coleção Ensaio Aberto
Apoio Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT – Portugal)

424 pp. | R$ 120 | 13 x 18,5 cm