Timbres sintéticos, beat digital, vazios sônicos, um “olá” dissimulado, uma protagonista artificial – “Off (Sad Siri)”, faixa que abre o quinto disco da cantora paulistana Céu, parece dar uma ideia oposta à vibração que paira sobre esta nova obra. Composto logo após o nascimento de seu segundo filho e gravado no início deste ano, APKÁ! – assim mesmo, com maiúsculas e exclamação – consolida a jornada inicial da carreira da cantora e compositora mais importante de sua geração num disco quente e minimalista, que junta extremos sonoros, temáticos, musicais e conceituais como se repassasse as viagens que ela fez em seus discos anteriores. E faz com que ela deixe esta crisálida transformada em uma nova compositora e intérprete, pronta para começar uma nova fase de sua carreira.
O título veio do caçula Antonino, uma expressão gritada pelo bebê de apenas um ano para designar satisfação plena. Sorrindo feliz, o filho de Céu com o produtor e baterista Pupillo berra a estranha palavra inventada para mostrar que está feliz com tudo que acabou de acontecer, seja uma refeição ou uma brincadeira, num misto de excitação, plenitude e agradecimento. E, de certa forma, APKÁ! é Céu fazendo exatamente isso – em forma de música. O lançamento sai pelo slap, selo da Som Livre e as faixas estão disponíveis em todas as plataformas digitais – ouça.
Ainda em “Off (Sad Siri)”, ela já começa a mostrar a colcha musical que compõe o novo trabalho, reunindo teclados chorosos e um violão melancólico aos seus vocais sussurrados e entrelaçados com os do vocalista congolês Leonardo Matumona, um dos poucos convidados do disco. Ao seu redor, ela repete o mesmo time do festejado Tropix, seu disco anterior: o francês Hervé Salters, da banda General Elektriks, repete seu papel como coprodutor e tecladista, bem como o baixista e fiel cúmplice Lucas Martins e Pupillo na bateria, programações e coprodução. O guitarrista Pedro Sá, que já tinha participado do disco de 2016, consolida o quarteto que acompanha Céu por quase todas as faixas. Aliadas à primeira, as duas faixas seguintes, “Coreto” (que foi composta com Gal Costa na cabeça) e “Forçar o Verão” fazem a ponte direta com o universo noturno da pista de dança do disco anterior, mas APKÁ! está longe de um Tropix 2.
Isso começa a se provar a partir da difusa “Corpocontinente”, que abre um atalho inusitado no percurso fluido que o disco parecia optar. Psicodélica em câmera lenta, ela começa a mostrar que Céu passa a experimentar para além do que poderia ser facilmente associado à sua produção: a partir da quarta canção, as composições, os vocais e os arranjos musicais – tudo inspecionado pessoalmente pela própria Céu -, começam a fundir as diferentes influências e referências musicais que exibiu em toda discografia.
Seus discos anteriores poderiam ser resumidos em determinadas paisagens: enquanto o homônimo disco de estreia apresentava-a ao lado de sua paleta inicial de influências (do samba ao reggae, passando por rock, MPB, soul, pop e música africana), os seguintes a fizeram percorrer por diferentes ambientes, quase todos imaginários: Vagarosa descia pela árvore genealógica do reggae, Caravana Sereia Bloom explorava o deserto e a estrada, Tropix era noturno, sintético e dançante. APKÁ! converge estes diferentes universos ao mesmo tempo em que apresenta novas experiências musicais. No novo disco, Céu experimenta novas formas de composição e novas formas de utilização de sua voz, cada vez mais segura de sua personalidade artística e de como consegue trazê-la para a superfície.
Dois dos bons exemplos estão nas duas únicas versões do disco – momentos desafiadores especificamente para Céu. Ela que é uma das principais responsáveis por mostrar para toda uma geração de cantoras que era possível compor em vez de apenas interpretar – papel das principais vozes femininas da história da música brasileira -, em APKÁ! se reinventa como intérprete a partir de composições inéditas que pediu para que dois compositores distintos – Caetano Veloso e Dinho, dos Boogarins.
“Pardo”, de Caetano, é uma das grandes composições do baiano neste século e ganha um corpo quase mágico na voz de Céu, que convidou Seu Jorge para cantarolar seu refrão sem palavras. “Make Sure Your Head is Above” foi uma encomenda inédita que Céu fez para Dinho – compor em inglês. O resultado é uma das melhores canções da carreira do compositor goiano, jogando uma luz solar pouco vista em seu grupo original. Esta faixa, um dos pontos centrais do disco, conta com um convidado de luxo, o guitarrista norte-americano Marc Ribot, que acompanha a cantora e Pupillo, fazendo discretos beats, numa canção deslumbrante. Nas duas composições, momentos únicos de APKÁ!, Céu domina seu timbre criando universos sonoros únicos a partir da relação de sua voz com os outros instrumentos – mostrando como já está partindo para outra forma de lidar com as canções, mesmo apenas como intérprete.
Como autora, mantém este amálgama musical pelo resto do disco, buscando graves gordos da Jamaica, guitarras desérticas, beats artificiais, em que seu surge cada vez mais confiante de si. “Nada Irreal” sobe ao espaço sideral em belos arpeggios digitais, “Fênix do Amor” resume um renascimento artístico ecoando tecnopop, pós-punk e electro, a deliciosa “Rotação” é tão radiofônica quanto experimental. Quase ao fim do disco, “Ocitocina (Charged)”, entrega sua principal influência. É uma canção sobre o parto de seu filho mais novo, cheia de metáforas e analogias que tornam-se evidentes na hora em que ela a batizou com o nome do hormônio liberado pelas gestantes pouco antes de dar a luz. Ela quis capturar a sensação mágica do parto, que joga a mulher para um lugar “fisicamente inexistente, mas sensorialmente real – pra dentro de si mesma”, um lugar imaginário que ela chama brincando de “partolândia” (que quase foi o título da canção).
O disco não foi apenas batizado por Antonino, mas puxado por sua existência. Gerido musicalmente enquanto o filho era gestado, começou a tomar forma logo que o menino nasceu. “Ocitocina” foi a primeira música a tomar forma quando ela começou a pensar no disco, no segundo semestre de 2018, e logo que ela conseguiu o primeiro rascunho de canções, pegou o filho e foi sozinha para Berlim, cidade em que mora Hervé, amigo e um dos produtores do disco, depois de trabalhar várias músicas com o outro produtor, Pupillo, ainda no Brasil. O pouco tempo que ficaram sozinhos – acompanhados do recém-nascido – serviu para consolidar as canções que foram finalizadas no Brasil no início de 2019. O disco termina tão artificial quanto começou, com a dupla Tropkillaz, transformando Céu numa diva dance androide.
APKÁ! parece inofensivo – como um bebê – mas é cheio de camadas de interpretação – como um bebê. “Alpha by night” é um programa de rádio ou uma senha para uma caçada noturna? Quem são os protagonistas de “Pardo”? As faixas de abertura e encerramento são irmãs? “Forçar o Verão” é uma música sobre o momento político atual do Brasil? “Fênix do Amor” é sobre a própria Céu? Ela dá as respostas, nem se importa com elas, só provoca.
Alexandre Matias é jornalista, curador de música e diretor artístico.
“APKÁ!” – Céu
Lançamento Som Livre – 13 de setembro/2019
1 – Off (sad siri) (Céu/Hervé Salters)
Olá, como vai você?
Num dia de sol, cores tão reais
Pra que luzes artificiais?
Preparei comandos sagazes
Para lhe trazer pra mim
Mas você foi tão chinfrim e pagou tão caro
Para me esquecer e ficar off
Oh não, ele está off!
Céu: voz
Pupillo: bateria e programações
Hervé Salters: teclados
Lucas Martins: baixo
Pedro Sá: violão
Leonardo Matumona: backing vocal
2 – Coreto (Céu)
Eu sou a voz, que balançou o teu coreto
Eu prometi não estremecer mais
Teu coração, já nos provou não ter sustento
Pra suportar a erupção
De uma voz incandescente como as lavas de um vulcão
Mas você petrificou, tudo, tudo que queimava
Trate de se resolver, pois agora
Tô cantando mais que nunca
O que aflora, eu quero ser a sua trilha
Quero tocar na sua rádio
Alfa by night
by night
Céu: voz
Pupillo: bateria e programações
Hervé Salters: teclados e baixo synth
Pedro Sá: guitarra
3 – Forçar o verão (Céu)
Uma nuvem se aproxima do cartão postal
Feito um convidado que ninguém quer receber
Mas quando ele vem
Não quer mais sair
Num sorriso debochado estaciona ali
Ouviram do Ipiranga
Quem foi que ouviu, eu não vi
Estava à sombra de um coqueiro
No céu azul anil
E o tempo fechou
E ninguém viu
Derrubando a rima
Fez-se então frio no Brasil
Pare de forçar o verão
Pare de forçar o verão
Céu: voz
Pupillo: bateria e programações
Hervé Salters: teclado
Zé Ruivo: teclado
Lucas Martins: baixo
Pedro Sá: guitarra
Marc Ribot: guitarra
4 – Corpocontinente (Céu)
Vou passear em seu delírio
Vou te relembrar como se faz
Uma saudade
Saudade
Palavra inexistente
No dialeto fora do nosso continente
Continente
Se acaso você passear
Por outras terras,
Tomar um outro ar
Talvez seja bom
Mas quando escutar aquele som
Vai lembrar do que chamamos de nos tornarmos um
E a saudade só se faz
Quando a soma de dois
Resulta em um
Sentido só pra nós
Vou passear em seu delírio
Vou te ensinar como se sente uma saudade
Saudade
Palavra inexistente
No dialeto fora do nosso continente
Continente
Se acaso você passear
Por outras terras, tomar um outro ar
Talvez seja bom
Mas quando escutar aquele som
Vai lembrar do que chamamos de nos tornarmos um
E a saudade só se faz
Quando a soma de dois
Resulta em um sentido só pra nós
Vou passear em seu delírio
Vou te relembrar como se faz
Uma saudade
Saudade
Céu: voz
Pupillo: bateria
Hervé Salters: teclados
Lucas Martins: baixo
Pedro Sá: guitarra
5 – Pardo (Caetano Veloso)
Nêgo
Teu rosa é mais rosa que o rosa da mais rosa rosa
Veio um beijo preto
Sangue sob a pétala
Veio um papo reto
Língua sobre a úvula
Nêgo
Nenhum orixá poderá desmanchar o que houve lá
Pra quê me quereres?
Homens e mulheres há
Por que tanto queres
Não me querer, querer
Sou pardo e não tardo a sentir me crescer o pretume
Sou pardo e me ardo de amores por ti sem ciúme
Sou pardo e não tardo a sentir me crescer o pretume
Sou pardo e me ardo de amores por ti sem ciúme
…de amores
Nêgo
Céu: voz
Pupillo: bateria, percussão e programações
Hervé Salters: teclados e baixo synth
Pedro Sá: guitarra
Seu Jorge: participação especial backing vocal
6 – Nada irreal (Céu/Hervé Salters)
Não te prometi o céu
Nem você a mim o sol
Nada irreal
Só queríamos ver onde isso ia dar
Não costumo mergulhar sem saber que fundo tem
Mas você meu bem me puxou pelas mãos, me entreguei
Tem algo em nós que me faz bem
Que leva pro céu o mau também
Libertando antigos ideais
Onde vivem sonhos mais reais
Não te prometi o céu
Nem você a mim o sol
Nada irreal
Só queríamos ver onde isso ia dar
Deu num mergulho em alto mar dentro do meu coração
Suficientemente infantil, pronto para navegar
Sei que devo admitir que não levo jeito algum
Pra salvar o mundo de mim, de você, de ninguém
Tem algo em nós que me faz bem
Que leva pro céu o mau também
Libertando antigos ideais
Onde vivem sonhos mais reais
Atravessáveis
Quisemos ser atravessáveis e fomos
Céu: voz
Pupillo: bateria e programações
Hervé Salters: teclados
Lucas Martins: baixo
Pedro Sá: guitarra
7 – Make sure your head is above (Fernando Almeida)
Oh no
You hit me strong
Is this confusion or love?
How do you make to 2 feel as 4?
Alright
I was wasting time
Buried inside my mind
Watching my interior life
I’ve been hiding from your love
I’ve been avoiding all the storm
But now I’m
Out of the hole
Out of the role
With nothing to hold
Nothing to show
Out of the hole
Out of the role
Ready to go
Ready to roll
Bring imperfections aboard
Make sure your head is above
Céu: voz
Pupillo: beats
Marc Ribot: guitarras
8 – Fênix do amor (Céu/Hervé Salters/Pupillo)
O mundo do mistério lhe foi dado
Apresentado como único caminho
Por ele aprendeu a existir
Respostas começaram a surgir
Astros, sonhos, signos, espíritos
Virou matéria prima pro ofício
Que tão firme e cedo escolheria
Tão incansavelmente decidida
Afinal era só uma menina
De um céu, não sei
Qual céu?
Talvez
O inferno tivesse céu
Não era exatamente o que esperava
Como uma resposta pros porquês
Mistérios, cheiros, auras não bastavam
Então trocou de pele para aprender a ser
Avis rara
oooooo
Fênix do amor
Para cada nebulosa no céu
Mais alto voou
Virou matéria prima pro ofício
Que tão firme e cedo escolheria
Tão incansavelmente decidida
Afinal era só uma menina
De um céu, não sei
Qual céu?
Talvez
O inferno tivesse céu
Céu: voz
Pupillo: bateria e programações
Hervé Salters: teclados e baixo synth
Lucas Martins: baixo
Pedro Sá: guitarra
9 – Rotação (Céu/Hervé Salters)
Você parado me olhando dançar
Fisgado, quando viu já foi
Pego por todos sinais
letras garrafais
farei
dos meus defeitos o assunto
e dos ouvidos a boca
eles que vão devorar as historias que você contar
quero dançar pra você
quero girar e sentir
tudo ao redor se mexer
quero girar e cair
sem sentir que isso é perder
não quero ter que acertar
olhar o sol nascer faz entender a rotação da terra
eu rodarei mil vezes até você saber como é que a banda toca
me toca
me toca
me toca
Céu: voz
Pupillo: bateria
Hervé Salters: teclados
Lucas Martins: baixo
Pedro Sá: guitarra
10 – Ocitocina (charged) (Céu/Hervé Salters/Pupillo)
Um passeio na livre dimensão
Desgeografada de demarcação
Continentada em minhas regras
Meu corpo meu rolê
Fui numa andada a procura de ti
Rio de dentro
Mar de fora
Pisando em mata alta, pororoca
Minha tela não se desfaleceria
Sem chance alguma de morrer a bateria
Porque eu estava charged
Carregada
Totalmente carregada
Eu tava charged
Atravessei a clareira
Dormi com a serpente
O sono das corujas
Bebi d´água nascente
Não me lembro de medo
Do renascer poente
Que tava a minha espera
Ao encontro do meu presente
Você, oh oh você
Você, oh oh você
Céu: voz
Pupillo: bateria e programações
Hervé Salters: teclados
Lucas Martins: baixo
Pedro Sá: guitarra
11 – Eye contact (prod. Tropkillaz) (Céu/Hervé Salters)
Hey sir
I need your eye contact
icon eye contact
Press that icon, eye contact
No screen between us
Just eye contact
Don’t be afraid
Not going to steal your soul
Not going to
Navigate into your inner world
Open your heart
feel what i’m asking for
Behind those glazed eyes
There’s an iris
The gateway to your soul
Don’t wanna lose my ability to feel real
Don’t want to forget my handwriting
Céu: voz
Hervé Salters: teclados
Tropkillaz: participação especial e produção musical
Produzido por Pupillo e Hervé Salters
Coproduzido por Céu
Gravado no estúdio Space Blues por Alexandre Fontanetti
Vozes gravadas no estúdio Muchito por Pupillo e Diogo Poças
Mixado por Mike Cresswell e masterizado por Felipe Tichauer no Red Traxx Music Studios, Miami, FL.
Produção Executiva André Bourgeois (Urban Jungle)
Foto Érico Toscana
Design Renan Costa Lima
Turnê APKÁ – Shows confirmados
19.09 – São Paulo | Sesc Pompeia
20.09 – São Paulo | Sesc Pompeia
21.09 – Guarulhos | Sesc Guarulhos
22.09 – Guarulhos | Sesc Guarulhos
28.09 – Brasília | Festival Ocupa Brasília
05.10 – Jundiaí | Sesc Jundiaí
19.10 – Belo Horizonte | Sesc Palladium
10.11 – Salvador | Festival Radioca
16.11 – Curitiba | Goat Fest
21.11 – Porto Alegre | Opinião
23.11 – Bauru
07.12 – Rio de Janeiro | Circo Voador