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“Foi Antônio Brasileiro/Quem soprou esta toada/Que cobri de redondilhas/Pra seguir minha jornada/E com a vista enevoada/Ver o inferno e maravilhas…”
Às vésperas de completar 75 anos, Chico Buarque acaba de ganhar o mais importante reconhecimento literário da língua portuguesa, o Prêmio Camões, evidentemente pelo conjunto de sua obra como compositor, dramaturgo e romancista. Poderia, no entanto, bem ter sido apenas pela estrofe acima, seis geniais redondilhas da toada que dá título ao álbum “Paratodos”, de 1993, um dos nove discos de sua carreira gravados entre os anos de 1987 e 2001, que a Sony Music Brasil disponibiliza pela primeira vez nas plataformas digitais de streaming, a partir do próximo dia 21 de junho, dois dias após seu aniversário de 75 anos.
De “Francisco” (1987) a “Cambaio” (2001), os nove álbuns, além de oito coletâneas que também serão relançadas digitalmente, representam a inestimável discografia de Chico na antiga gravadora BMG, hoje no catálogo da Sony. Essa fase marca sua digamos maturidade musical como compositor, letrista e cantor, um conjunto de cada vez mais sofisticadas canções, mas que nem por isso perdem sua aparente simplicidade de cantigas populares.
Para essa ocasião, a Sony preparou também, sempre no universo digital, uma página interativa exclusiva, uma sala virtual sobre o mar do Rio, em que a cada clique do visitante, ele fica sabendo mais sobre toda a carreira do Chico, especialmente pela fase e por cada disco deste relançamento.
A obra-prima “Paratodos”, um dos pontos mais altos dessa fase, é um bom exemplo, senão vejam a estrofe destacada acima: na forma de improviso de um coco de embolada, Chico resume em seis versos não apenas a sua carreira como compositor, mas a trajetória de sua geração, despertada para a música brasileira pela obra inspiradora de Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, o tal Antônio Brasileiro “maestro soberano” da canção, Tom Jobim para o mundo a partir da bossa nova, pai de geração que viveu o inferno e as maravilhas desses anos todos no Brasil.
No caso de “Paratodos”, Jobim literalmente “soprou esta toada”: a inspiração de Chico veio de “Dinheiro em penca”, embolada de Tom Jobim e do poeta Cacaso, do segundo disco que o maestro gravou com Miúcha, irmã de Chico falecida este ano, na antiga RCA Victor (também do catálogo da Sony). Chico, que participou como cantor da gravação original de “Dinheiro em penca” em 1979, pegou desde então a mania de brincar de escrever novos versos (“encher de redondilhas”) a composição de Tom até que, com melodia sua levemente inspirada na do parceiro, partiu da própria árvore genealógica para desenhar a árvore genealógica da moderna música brasileira até a sua geração e com saudação às próximas: “Evoé, jovens à vista”.
“Paratodos”, o álbum, e já a partir da canção-título, é um impressionante conjunto de canções que se tornariam clássicos da música brasileira, como é o caso de “Futuros amantes” (“Futuros amantes, quiçá/Se amarão sem saber/Com o amor que eu um dia/Deixei pra você”), “De volta ao samba” (“Acenda o refletor/Apure o tamborim/Aqui é o meu lugar/Eu vim”) ou a impressionante reflexão sobre o “Tempo e artista” que, qualquer uma das três, já lhe valeria o Prêmio Camões.
E o que dizer das canções então recentes que Chico trouxe de outros trabalhos para o álbum: “Choro bandido”, do musical de teatro em parceria com Edu Lobo “Corsário do rei”, de versos como “Mesmo que você fuja de mim/Por labirintos e alçapões/Saiba que os poetas como os cegos/Podem ver na escuridão”; ou, também com Edu, “Sobre todas as coisas”, do balé “O grande circo místico”, uma impressionante conversa com Deus, ou consigo mesmo, um solilóquio em forma de canção; e ainda “Piano na Mangueira”, com Tom Jobim, que descreve de forma poética a homenagem da escola de samba ao parceiro, transformado em enredo.
Do samba sincopado, gênero tão cultivado por Chico, “Biscate” (que tem participação de Gal Costa) à canção autobiográfica “A foto da capa”, as músicas de “Paratodos” trazem um letrista cada vez mais inspirado, das aliterações da primeira (“Quem que te mandou tomar conhaque/Com o tíquete que te dei pro leite”) às inusitadas rimas da segunda (“É uma foto que não era para a capa/Era a mera contracara, a face obscura/O retrato da paúra quando o cara/Se prepara para dar a cara a tapa”). De antigas parcerias, como a de Francis Hime em “Pivete”, a novas como a com o seu arranjador Luiz Claudio Ramos em “Outra noite”, “Paratodos” parece ser de fato a melhor síntese desse período do trabalho de Chico.
A fase BMG começara alguns anos antes, com “Francisco”, em 1987. Então há três anos sem gravar um disco seu de carreira depois do sucesso de “Vai passar”, e inteiramente dedicado a trilhas de cinema e scores de teatro, Chico entra em estúdio com algumas canções desses trabalhos, como a singela valsa “As minhas meninas” e o “Bancarrota blues” (em parceria com Edu Lobo). Com o novo parceiro, e seu arranjador já há alguns anos Cristóvão Bastos, ele apresenta mais uma canção de amor que seria um clássico da música brasileira, “Todo sentimento”. E inaugura outras pa rcerias, com Vinicius Cantuária (“Ludo real”) e João Donato (“Cadê você?”), além de apresentar um samba sincopado inspiradíssimo sobre a condição do artista brasileiro, “Cantando no toró” (“Sambando na lama de sapato branco, glorioso/O grande artista tem que dar o tom…”).
Mas sua inspiração parece um pouco diferente da de trabalhos anteriores, tem um quê mais, digamos, literário, como na obra-prima do disco, “Velho Francisco”, um personagem pronto de romance, um velho num asilo recordando sua vida cheia de aventuras e delírios; ou na descrição apocalíptica que faz de um Rio de Janeiro lírico e violento em “Estação derradeira”, outro futuro clássico de seu cancioneiro.
No disco seguinte, de 1989 e que se chama simplesmente “Chico Buarque”, a impressão de um novo tipo de inspiração se confirma em canções ambiciosas como a misteriosa “Morro dois irmãos” (na qual a música e a letra dão conta da grandiosidade poética de uma montanha), o samba “O futebol” (que dá conta dos dribles, das jogadas e dos verdadeiros mitos que são os jogadores de futebol) e a lindíssima “A mais bonita” (sobre o denso universo da solidão feminina). Em “Uma palavra”, por sua vez, Chico aborda a sua própria matéria-prima: “Palavra dócil/Palavra d’água pra qualquer moldura/Que se acomoda em balde, em verso, em mágoa/Qualquer feição de se manter palavra”. Chico encara a arte em si, os grandes temas, como um poeta maior.
Parece natural que o trabalho seguinte de Chico não fosse um novo disco, mas um romance, “Estorvo”, que foi lançado em 1991 e parece anunciado pelas canções de inspiração literária que vinha fazendo. Seria o primeiro de uma série de livros que passaria a escrever e o consagraria como escritor, vocação retomada e finalmente realizada, e que passaria a ser alternada religiosamente com a realização de discos.
Antes de parar para lançar “Estorvo”, contudo, Chico faz gloriosa declaração de amor à música em forma de antologia de sua obra musical em uma turnê durante os anos de 1989 e 90, a primeira desde o show que fizera com Maria Bethânia em 1975. De “A Rita” (1965) a “Todo sentimento” (1987), Chico faz um balanço de sua obra e, gravado na capital francesa, lança “Chico Buarque ao vivo – Paris, Le Zenith”, com 22 músicas pinçadas de toda a sua carreira, um presente como nunca havia dado aos seus fãs.
Depois de finalmente lançar “Estorvo”, Chico faria a obra-prima “Paratodos” que, no já citado “De volta ao samba”, descreveria a alternância entre música e literatura que se daria a partir dali, uma música cada vez mais “literária” e, por que não dizer, nos livros uma prosa em que se nota algo da música, das variações rítmicas da música.
Mas a dedicação à literatura não tornaria Chico menos musical, muito pelo contrário. Contundido gravemente numa partida de futebol, Chico ficou meses em casa sem poder jogar, de perna quebrada e, violão em punho, começou ele próprio a rever suas canções, sobretudo do ponto de vista harmônico. Tal revisão gerou o álbum “Uma palavra” (1995), no qual revisitava novas (“O futebol”, “Morro dois irmãos”, “Estação derradeira”), velhas (“Samba e amor”, “Joana francesa”) e eternas (“A Rosa”, “Eu te amo”, “Amor barato”) canções sob a condução da harmonia muito pessoal do seu violão. Tal disco marca a consagração da parceria com o maestro Luiz Claudio Ramos, que já trabalhava com Chico há tempos, fizera a direção musical do álbum de 1989 e de “Paratodos”, e que está com Chico até hoje. Nesta nova fase, sob Luiz Claudio Ramos, que não por acaso é violonista, as harmonias criadas pelo compositor seriam mais valorizadas nos arranjos, o que acontece de forma explícita neste “Uma palavra”, um disco de canções de Chico exatamente como ele as compôs.
Como já vivera anos antes com o parceiro Tom Jobim, em 1998 Chico seria ele próprio enredo da Mangueira. Foi natural então que seu disco seguinte fosse “Chico Buarque de Mangueira”, na verdade um disco coletivo em homenagem tanto a Chico como à Verde-e Rosa que o homenageava. Para ocasião, em parceria com o poeta e mangueirense Herminio Bello de Carvalho, e num raro caso em que na parceria entra com a melodia, Chico lança o samba “Chão de esmeraldas”, de exaltação à Mangueira.
Como cantor, reveza-se em clássicos da escola ao lado de artistas do samba como Alcione, sua irmã Cristina Buarque, Carlinhos Vergueiro, Jamelão, João Nogueira, Lecy Brandão e Nelson Sargento. Em “Divina dama”, obra-prima de Cartola, Chico mostra sua maturidade como cantor, na faixa mais comovente do disco pelo encontro, nunca ocorrido em vida do autor, dos universos de dois mestres da música brasileira de gerações e origens distintas, mas de semelhante voltagem artística.
Em “As cidades” (1998), primeiro disco de canções inéditas desde “Paratodos”, Chico está mais literário do que nunca. Não por acaso, inspira-se em escritores para compor grandes canções: como o Guimarães Rosa dos personagens Manuelzão e Miguilim, que inspiram os sem-terra de “Assentamento”, ou a Iracema de José de Alencar que vai dar na imigrante brasileira que “lava chão numa sala de chá” na América em “Iracema voou”. (E aqui vale abrir um parêntese para ressaltar essa típica genialidade de Chico ao pegar o nome inventado por Alencar, Iracema, a índia que era anagrama de América em seu território “invadido” pelos portugueses, e descobrir novos significados para o nome no drama dos brasileiros hoje expatriados por razões econômicas).
Em “As cidades” é impossível não notar o espírito literário no realismo fantástico de “Sonhos sonhos são” e de “A ostra e o vento” (para o filme homônimo de Walter Lima Jr., baseado no livro de Moacir C. Lopes), nas imagens poéticas para mais uma vez descrever o Rio de Janeiro caótico e maravilhoso de “Carioca”. Chico retoma a parceria com Dominguinhos no “Xote de navegação” e é ainda mais sofisticado na primeira parceria com Guinga, “Você, você”, uma obra-prima que faz jus aos dois compositores e, mais ainda, ao seu revelador subtítulo, “um canção edipiana”, a densa harmonia de Guinga inspirando no letrista traquinas Chico Buarque os sentimentos confusos de um menino em seu quarto numa noite em que sua mãe está fora.
Já novamente habituado aos palcos e com banda afiadíssima dirigida por Luiz Claudio Ramos, com destaque para o baterista Wilson das Neves, Chico aproveita para fazer nova antologia de sua obra no álbum duplo “Chico ao vivo”. E embora ele inclua mais canções atuais, as releituras de velhas canções também se destacam, como o samba de carnaval “Quem te viu, quem te vê”, de 1967, que é todo cantado pelo público de forma comovente.
Um dos principais compositores de música para cinema e teatro do Brasil, Chico encerra em 2001 sua fase BMG comme il faut: com o lançamento de todo um score musical feito em parceria com Edu Lobo para a peça “Cambaio”, escrita e dirigida por João Falcão. Com Edu, Chico já havia feito três outros musicais antológicos, os balés “O grande circo místico” e “Dança da meia lua”, e a peça musical “O corsário do rei” – músicas desses três trabalhos, lançados originalmente pela Som Livre, compõem aliás a compilação “Álbum de teatro”, lançada pela BMG em 1997 e que agora estará disponível para download pela Sony.
“Cambaio”, o quarto trabalho da dupla para os palcos, não fica atrás na qualidade das canções. Algumas já se tornaram clássicos da música brasileira, coisas como “Uma canção inédita” (pelo próprio Chico no disco), “Lábia” (por Zizi Possi) e “A moça do sonho” (por Edu Lobo). Outras, ainda esperam mais apreciação, como as tensas “Ode aos ratos” (por Chico) e “Veneta” (por Gal Costa) e a obra-prima de canção de amor que é “Noite de verão”, de versos como “Este não sou eu/Este é um impostor/Que pobre de amor se diz/Deve ser um rei/Deve ser um deus/Como deve ser feliz”, auto referindo-se ao homem que ama tanto a mulher que não acredita ser ele merecedor da felicidade de possui-la. Mas que pode ser aplicado ao fã do Chico que agora tem todas essas suas canções disponíveis aí, o tempo todo nas plataformas digitais, ao alcance das mãos, do ouvido. Inacreditável, mas real.
Hugo Sukman
Lista completa:
Francisco (1987)
Chico Buarque (1989)
Chico Buarque Ao Vivo – Paris, Le Zenith (1990)
ParaTodos (1993)
Uma Palavra (1995)
Serie Aplauso – Chico Buarque (1996)
Chico Buarque De Mangueira (1997)
Mpb No Jt (1997)
O Melhor De Chico Buarque (1997)
Álbum De Teatro (1997)
As Cidades (1998)
Chico Ao Vivo (1999)
Focus: O Essencial De Chico Buarque (Maxximum) (1999)
Cambaio (2001)
Rca 100 Anos De Música – Chico Buarque (2001)
Chico Buarque Essencial (4CDs + DVD) (2008)
Seleção Essencial – Grandes Sucessos – Chico Buarque (2011)